terça-feira, 5 de junho de 2012

Quem tem menos vergonha: jornalistas ou Seleção Nacional?

Desde há anos nos habituamos a alguma histeria televisiva sobre as participações das Seleções Nacionais em fases finais de campeonatos. Contudo, nunca como desta vez a distância entre a cobertura noticiosa e o sentimento real dos portugueses foi tão evidente. Há dois dias assistia a mais uma reportagem sobre mais uma passagem do autocarro com os jogadores por uma rotunda, facto totalmente desprovido de interesse noticioso, em si, mas que conseguiria entender se correspondesse ao interesse do público. Contudo, a própria jornalista da estação de TV que fazia a transmissão afirmava que estavam “dois adeptos” no local, o que demonstra bem o enorme desfasamento não apenas do interesse público mas também já do interesse do público para com o objeto de reportagem.
Mais grave é o que se passa nos bastidores da Seleção. Uma estação de televisão privada ganhou o direito a fazer a cobertura “em exclusivo” do que considera serem os “bastidores da Seleção”. As reportagens passam em blocos noticiosos especiais ou formais de informação. Ou seja, nos próprios serviços diários de informação. Estas “reportagens”, contudo, levantam grandes questões do ponto de vista ético e deontológico, além de serem de interesse muito duvidoso, quer para o público quer para a própria Seleção.
E porquê? Em primeiro lugar porque não se percebe a razão de ser aquela estação de televisão em concreto a ter acesso a parte dos factos e não todas as outras? A Seleção Nacional e, mais formalmente, a Federação Portuguesa de Futebol não são entidades ou objetos privados. São instituições que representam o País e a Federação tem o estatuo de interesse público sem fins lucrativos. Importa, pois, que as suas decisões e nomeadamente as que implicam vantagens comerciais, tenham relevância pública, sejam publicitadas e defendam esse mesmo interesse coletivo. No caso concreto, não se conhecem os termos do acordo e que vantagem, se a há, para a Federação.
Pode então perguntar-se: que interesse público existe na divulgação dos bastidores da Seleção? O que ganha a Federação com isso. O que ganha a Seleção? Os jogadores sentem-se melhor, mais tranquilos e desempenharão melhor as suas funções perante a presença constante das Câmaras? Que vantagens monetárias existem que o justifique? Quem ganha? Quanto ganha. O que ganha o país ao deixar uma estação de televisão entrar os quartos, nos balneários, no departamento médico a toda a hora?
Mas há outra questão, além da do interesse público da Seleção. É a do interesse público da informação e é a questão da ética e da deontologia jornalística. Estando uma ou mais estações de TV ou outros jornalistas autorizados a circular e a cobrir “em exclusivo” determinados momentos que, à partida, seriam do foro íntimo de um grupo de trabalho, que condições lhe formam impostas? Têm esse jornalistas, que aceitaram com os seus editores e diretores, limitações ao seu trabalho? Estando uma equipa de reportagem dessas num balneários e sentido o Selecionador a necessidade de “dar dois berros” a um jogador, é livre o jornalista de editar as imagens e divulga-las no “telejornal” seguinte? E se Saltilho se repetir? Que tipo de reportagem podemos esperar?
É que se assim não é, estamos perante um princípio de censura assumida e consentida, o que é inaceitável. Ou melhor, deveria ser inaceitável para a estação de TV e para os jornalistas em causa. No mínimo, a estação de TV ou o órgão de informação que se sujeitasse a tal constrangimento de edição, deveria informar o telespetador de tal facto.
Estamos, portanto, perante uma histeria jornalística que não é nova – mas que particularmente desta vez nem sequer corresponde a qualquer histeria pública – e estamos perante atos, ditos “jornalísticos” que não apenas são potencialmente lesivos à Seleção e ao interesse público que a Federação jurou defender, como também potencialmente lesivos do interesse público que, por definição, os jornalistas devem defender.
Era bom que alguém fosse capaz de esclarecer este assunto e nos viesse dizer se estamos perante uma total irresponsabilidade da Federação – Paulo Bento incluído (ver artigo com opinião de Manuel José) – expondo os verdadeiros bastidores de um grupo de trabalho que se quer fechado, ou se estamos perante uma monumental mentira, credibilizada pela capa de um jornalismo barato e que, despudoradamente vai acabando com a réstia de bom nome que a profissão detém.
Um último desabafo: os que tanto se indignam com a “pressão” que um telefonema de um ministro exercerá sobre um jornalista, não se questionam sobre que contratos comerciais ou outros limitam muito mais brutalmente a liberdade de outros colegas? Perdão, “camaradas”?

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