A tendência para a esquerda se apropriar de património que
não lhe pertence é estrutural. Sempre assim foi, em Portugal e no Mundo. No
Mundo, com ditaduras leninistas e marxistas cujas qualidades me escuso de
recordar. Em Portugal, a esquerda apropria-se frequentemente dos direitos
exclusivos da razão, do povo, dos trabalhadores. Como se a razão, o povo e os
trabalhadores não a contrariassem sistemática e repetidamente a cada ato
eleitoral.
Uma das expropriações que a Esquerda fez a um património que
é coletivo foi a da música Grândola Vila Morena. Da autoria de José Afonso, que
a escreveu em 1971, o tema, hoje já sem direitos de autor e portanto património
coletivo, é um hino à democracia e um elogio à capacidade e direito de escolha
do povo.
A música ficou ligada à revolução, quando três anos depois,
o movimento das forças armadas a resolveu utilizar como senha radiofónica. A
revolução serviu para repor o direito de escolha do povo, em democracia. Teve
sucesso, nessa medida.
Em 2013, mais de quatro décadas após José Afonso a ter
escrito em ditadura, há uma certa esquerda, disfarçada de anarquista, que
expropriou a canção ao povo português, ao Alentejo e a José Afonso. A música
que serviu para elogiar o direito à escolha e ajudou a construir a democracia
constitucional que Portugal adotou após o 25 de Abril de 1974, serve hoje para
contrariá-la.
Afinal, Portugal vive atualmente num regime democrático,
livre, constitucionalmente estável e reconhecido pela comunidade internacional.
Desde a revolução, os portugueses têm escolhido quem os governe e quase sempre
num mesmo sentido, elegendo livremente os partidos do centro ou centro esquerda
(às vezes um pouco mais à direita) mas nunca tendo elegido a esquerda comunista
ou mesmo revolucionária que, após o 25 de Abril de 1974 tentou implementar, ela
própria, uma ditadura de esquerda, de inspiração marxista-leninista e apoio soviético.
Se o desejo expresso por José Afonso na canção se
concretizou em 1974 com a queda da ditadura de direita e continuou a cumprir-se
no 25 de Novembro de 1975, acompanhando-nos até hoje. “O povo é quem mais
ordena” e é, de facto assim. Tem sido assim. Mesmo que ordene coisa diferente
daquela que o autor esperava e que a esquerda minoritária e ressabiada com o
que ordena o povo.
Querer, por isso, lutar com armas democráticas, como é a
memória de uma música, contra a democracia que é apregoada na mesma música, não
é nada bom sinal e faz lembrar as igrejas da intrujice que usam a Bíblia como “Palavra”.
E é o que está a acontecer. Porque, na realidade, aquilo que cantam a
meia-dúzia de manifestantes que corre o país atrás de governantes, não é a
apologia à escolha do povo. A escolha do povo está feita e repetidamente feita
num sentido.
O que cantam, abusando do espírito de um falecido autor, é
que a vontade de uma pequena parte do povo se sobreponha à vontade da maioria
democrática. Ou seja, conspurcando a letra e a música de José Afonso – que
guardo desde pequenino na minha discografia em vinil – o que cantam é a
apologia a uma ditadura de esquerda, marxista-leninista, de inspiração
soviética ou então, a anarquia, que nunca teve, sequer, uma face visível em
Portugal. Tal e qual tentaram fazer após o 25 de Abril, os mesmos ou outros
parecidos, cantam a “Grândola” contra o povo e contra a vontade do povo. Ou
seja, contra a “Grândola”.
Por muito que tentem fazer de conta que não, quem escolheu
este Governo foi o povo. E será o povo a escolher o próximo. E o próximo será
parecido com este.
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